ALGUMAS NOÇÕES SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA DANÇA CÊNICA EM ÁFRICA: PARTE 2

O balé Merveilles de Guiné – Conversa com Mohamed Ifono

 Por Rose Mara Silva


   

No texto anterior contextualizei um pouco sobre o movimento de formação da grandes companhias nacionais de dança cênica africana nos anos 1960 iniciado pelo Les Ballets Africaines na Guiné-Conacri, se você não leu o texto anterior seria interessante dar uma olhadinha nele para poder expandir as possibilidades de interpretações deste texto.
A partir da conversa com o Mestre Mohamed Ifono vamos ter um panorama bem interessante sobre a repercussão da estruturação da dança cênica africana nesses grandes balés na Guiné-Conacri.
O Mestre Mohamed Ifono, foi secretário geral, ensaiador, assistente de direção no Ballet Les Merveilles de Guiné, um produtor/artista dedicado que chegou a desempenhar mais de 6 funções dentro da organização e treino de bailarinos na companhia durante 29 anos. E a partir de todas essas experiências ele nos lança novos horizontes sobre a história do desenvolvimento das danças cênicas na Guiné-Conacri.





Rose: Como foi criado o Ballet Les Merveilles de Guiné?

Mestre Mohamed: O Ballet Merveilles de Guiné foi criado por Kemoko Sano, um dos maiores percussionistas e coreógrafos da Guiné-Conacri que foi convidado por Sekou Touré a ser diretor geral do Ballet Nacional Joliba, e em 1985 foi nomeado diretor coreográfico dos Balés Africanos. Nessa época na Guiné só haviam os balés nacionais financiados pelo estado, e em 1986 Kemoko Sano criou o primeiro balé privado da Guiné-Conacri, o Merveilles de Guiné, ou seja, a primeira companhia de dança independente da Guiné-Conacri, que fez turnês em diversos países do continente africano, americano e europeu.



R: Qual a importância do Ballet Merveilles de Guiné no contexto guineense?


M M: O Ballet Merveilles de Guiné foi muito importante, pois se tornou um dos grandes centros de formação da Guiné-Conacri, de onde saíram os maiores bailarinos e professores guineenses de dança. Cerca 50% dos artistas guineenses que estão pelo mundo sobretudo nos Estados Unidos, foram alunos e bailarinos no Ballet Merveilles de Guiné. Kemoko Sano era um homem muito sofisticado, de muito conhecimento, e formou gerações de grandes bailarinos e professores. Só para citar alguns nomes: Mamadi Sano, Mouminatou Camara, Fará Touno, Manimou Camara, Sekou Sano, Cedric Frank Sthephens Sano, Fodé Seydou Bagoura, Naby Bagoura, Abou Sylla, Ally Diabate, Youssouf Koumbassa, Alseny Soumah, Tenenfig Dioubate, Mangue Sylla, Abdoulaye Sylla, Karamoko Camara, Mariétou Camara, Naby Bagoura, Mariam Bangoura, Karietou Conte, Mamasata Conteya, Yalani Bangoura, Mataly Béavogui, Aminata Sano, Mamady Sano.




R: Como você chegou ao Ballet Merveilles de Guiné?

M M: Eu faço parte da terceira geração de bailarinos formados pelo Balé Merveilles de Guiné, quando eu estava na escola primária houve uma greve de alunos e professores, e a polícia chegou. Foi um grande caos, então eu pulei o muro da casa ao lado que era a sede do Merveilles de Guiné e fui me esconder lá. À partir desse dia me tornei um dos alunos, fiz carreira e atuei durante 29 anos no Balé Merveilles de Guiné em diversas funções tanto artísticas quanto administrativas, chegando a ser a terceira pessoa responsável pelo Ballet dentro da hierarquia organizacional.



R: Você pode contar pra gente um pouco da história de Kemoko Sano?

M M: Kemoko Sano foi professor de educação física, foi diretor de um pequeno grupo de danças e acabou sendo descoberto pelo presidente Sekou Touré, e assim foi convidado por ele em 1973 para ser diretor geral do Ballet Nacional Joliba, em 1985 foi convidado para ser diretor coreográfico dos Balés Africanos. E em 1986 resolveu investir na formação do Ballet Merveilles de Guiné. Kemoko Sano tinha conhecimentos profundos sobre o movimento corporal, sobre estruturas rítmicas e sobre a mitologia africana, e combinou tudo isso dentro de suas criações coreográficas, o que estabeleceu um diferencial no Ballet Merveilles de Guiné que através de um treinamento corporal e intelectual bem planejado por Kemoko Sano, formava bailarinos e músicos que se movimentavam com extrema leveza e engenhosidade. Por conta da metodologia de trabalho de Kemoko Sano o Ballet Merveilles de Guiné virou um celeiro de onde saíam os maiores bailarinos dos balés nacionais.




R: Qual a importância das companhias de dança na Guiné Conacri?

M M: As companhias de dança foram de extrema importância na Guiné, tanto no processo de proclamação da independência nacional, na estruturação do governo de Sekou Touré, quanto na estrutura econômica do país. Sekou Touré viu nossa força cultural e soube usá-la muito bem, pois a criação dos balés nacionais foi muito importante para a reestruturação da identidade do povo guineense através da valorização cultural, foi também uma plataforma de sustentação do governo de Sekou Touré perante a nação, ao mesmo tempo que em alguns anos a verba ganha através dos Balés Nacionais era também destinada ao pagamento do salário de funcionários de outros departamentos do governo. Na Guiné-Conacri nós temos dois Balés Nacionais (Balés Africanos e Balé Nacional Joliba), os balés das comunidades (cada comunidade há um balé), e os balés privados que funcionavam como escolas de formação de futuros bailarinos dos Balés Nacionais. A grande movimentação econômica gerada pelos Balés Nacionais enriqueceu muitas famílias, fez diferença na vida de muitas pessoas que se não tivessem participado dos Balés Nacionais hoje em dia não teriam nada. Na Guiné-Conacri cerca de 60% da população é artista, a arte é um grande motor econômico no nosso país.




R: Qual a diferença entre a dança que se faz na vila e a dança que se faz nos Balés?

M M: A dança que fazemos na vila não é a mesma que fazemos nos balés. Nós observamos a dança das vilas, dos grupos étnicos e recriamos os movimentos, estruturamos sequências coreográficas, redimensionamos a energia do corpo. Tudo é transformado dentro da dança cênica, a música, a dança, as encenações, tudo passa por um processo de transformação para que seja colocado em cena. É um trabalho complexo que exige muita dedicação e estudo, teórico e prático.



R: Há uma metodologia específica?


M M: Nós fazemos várias danças, de várias etnias, cada uma delas há uma metodologia. Há um processo de treinamento para que os corpos dos bailarinos estejam no mesmo nível de energia, para que haja uma homogeneidade no corpo de baile, com essa estruturação nós buscamos a harmonia do grupo. Quando o bailarino está em uma festa ou dançando na sua comunidade ele pode fazer como ele quiser, mas quando ele está no balé há princípios básicos de movimento a serem seguidos. Cada dança tem seu método, cada canto tem seu método.



R: Nos balés se trabalha com canto, dança, atuação, tudo junto?

M M: Cada balé tem seu método de treinamento e criação, no Merveilles de Guiné nós tínhamos artistas competentes em múltiplas áreas, mas no momento de criação o grupo era dividido em quatro, aqueles que eram melhores percussionistas iam para a percussão, aqueles que eram melhoras cantores iam para o canto, e os bailarinos/atores eram divididos entre homens e mulheres, cada uma dessas partes tinha seu diretor responsável. Os artistas desenvolviam suas criações de acordo com um tema estabelecido e os diretores iam lapidando essas criações até chegarem todas ao ponto comum que resultaria no espetáculo. É um processo complexo e por vezes difícil, mas que nos possibilitou criar lindos espetáculos.




R: Como aconteceu o processo de pesquisa para a estruturação metodológica do Ballet Merveilles de Guiné?

M M: Todos os diretores artísticos dos balés nacionais foram grandes pesquisadores da cultura guineense e africana, eram verdadeiras bibliotecas humanas, fizeram amplos estudos de campo sobre as estruturas rítmicas e as danças das várias etnias, e a partir dessa ampla pesquisa elaboraram seus métodos de trabalho. Todos eles geraram muito conhecimento pratico e teórico sobre a cultura guineense.





R: Há dança contemporânea na Guiné-Conacri?

M M: Sim, há grupos que trabalham com a dança contemporânea na Guiné-Conacri. Há alunos do Merveille de Guiné que empreenderam esse caminho. Na sua maior parte os bailarinos fazem a formação dentro dos balés nacionais ou balés privados de dança tradicional, e depois começam a trabalhar com a dança contemporânea, um exemplo disso é o bailarino Lamine Keita, que tem atualmente uma ampla pesquisa e desenvolve trabalhos com dança contemporânea africana pela Europa.




R: Você gostaria de dizer mais alguma coisa?

M M: Sim, gostaria de dizer que sou imensamente grato a Kemoko Sano, Yamoussa Soumah, Ahmed Sekou Sano, e a toda a equipe do Balé Merveilles de Guiné pelo acolhimento profissional que me deram todos esses anos, isso me fez crescer muito tanto como pessoa, quanto como profissional.





Reflexão

A partir dessa conversa com o Mestre Mohamed Ifono podemos perceber que há muitas questões metodológicas e estruturais acerca das artes cênicas africanas que devemos conhecer melhor. Bem como, estratégias utilizadas por Sekou Touré que geraram uma forte economia da cultura, termo inovador no campo cultural brasileiro contemporâneo, - mas que a Guiné-Conacri já conhece a muitos anos - e que podem servir como material de análise para que possamos desenvolver mais ideias nesse campo. Os balés nacionais geraram um grande movimento de ensino da dança, com escolas e centros de formação, voltados à pesquisa, transformação e disceminação da dança e desembocaram em uma "cultura da pesquisa em dança" que se espalhou por países africanos, que pode ser percebida em trabalhos como o de Irène Tassembèdo no Burkina Fasso, e Germaine Acogny no Senegal, por exemplo. Sem contar os inúmeros outros conteúdos de fortalecimento da identidade através da valorização cultural. Por hoje paramos por aqui! Axé a todos!



O mestre Mohamed Ifono ministrará uma oficina na Universidade Zumbi dos Palmares, não percam:



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

ARTE DECOLONIAL – COMPREENDENDO A AESTHESIS DO SUL DO MUNDO

Parte 1 - O BLACK ARTS MOVEMENT: SIGNIFICADO E POTENCIAL

CONVERSA COM FAUSTIN LINYEKULA COREÓGRAFO CONGOLÊS 1 - REFLEXÕES SOBRE A DANÇA CONTEMPORÂNEA EM ÁFRICA