CONVERSA COM FAUSTIN LINYEKULA, COREÓGRAFO CONGOLÊS, Parte 2- REFLEXÕES SOBRE A DANÇA CONTEMPORÂNEA EM ÁFRICA


por Rose Mara Silva



Fundador do Studios Kabako em Kisangani, República Democrática do Congo e co fundador da primeira Companhia de Dança Contemporânea da África do Leste, Faustin esteve na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MIT-SP), com temporada de seu espetáculo A Carga (10 a 13 de março) e um workshop voltado para o público das artes cênicas, ambos vivências profundas tanto intelectual quanto artisticamente, entrelaçando questões filosóficas e artísticas da negritude contemporânea.
Em uma conversa livre e tranquila pude conhecer um pouco mais sobre a obra e pensamento de Faustin, e divido com vocês a segunda parte desse rico diálogo. Quem quiser saber o que conversamos na primeira parte, só olhar as postagens anteriores.

Rose: Há muitos artistas e intelectuais que afirmam que a arte contemporânea africana é uma “interferência” da forma de organização artística europeia, há mesmo quem diga que seja uma “imitação” da arte europeia... O que você pensa sobre isso?

Faustin: Houve um momento onde eu perdi muita energia me debatendo com essa questão, mas hoje em dia eu faço o que é importante para mim, porque os estereótipos já estão estão prontos, quando eu digo que venho de África, já há uma resposta pronta para o que eu sou e o que devo fazer, mas e depois?
Eu penso que é no depois que as coisas começam, não se pode ignorar todos os pré julgamentos, todas as expectativas... Mas eu não por minhas energias dentro disso...
Então eu trabalho sobre a proposta de um mundo muito complexo, que é de onde eu venho... mesmo em um lugar pequeno e distante como Bilo, é extremamente complexo... e é isso que me interessa... Uma vez que ser humano é algo complexo, dinâmico... Nós estamos à procura todo o tempo... Então porque esse traço de humanidade me é renunciado? Porque eu venho de um terminado local? Porque fui colonizado? Não... Se os outros querem ficar fechados dentro do passado, isso é problema deles...
Mas há também o outro extremo, que para mostrar o “quanto” somos contemporâneos não queremos olhar nosso passado, para nossa história... isso é um outro extremo, e a ideia é fugir disso... Porque os extremos são as respostas prontas, são a descomplexificação do mundo que é extremamente complexo...

Rose: … É que a resposta pronta traz segurança né?! E ontem no workshop, quando você falou desse mundo inseguro, e da atenção física que é necessário para habitar esse mundo, me fez pensar no tônus que a gente aciona para estar em um determinado estado de atenção...

Faustin: Sim, é necessário estar alerta, com as antenas sempre ligadas, e se apoiando sempre em tudo isso que você é, é isso que nos permite negociar o nosso lugar no mundo, mas se você se fecha apenas sobre um lugar, o que você vai fazer depois? Esperar a morte?...

Rose: Então, em África a dança contemporânea vai acontecendo em vários pólos?

Faustin: Sim, há muitos espaços em África onde se desenvolvem as construções de dança, do corpo... Há o La Termitière no Burkina Faso, L’École de Sables no Senegal, entre muitos outros, espaços únicos e extraordinários... Porque o que precisamos em África são de laboratórios... Houve um movimento africano que nós chamamos “Os Ballets Nacionais”. O primeiro deles foi o Ballet Nacional da Guiné, e o mais interessante da história desse ballet, é que uma das questões de Seculture (presidente da Guiné Conacry que criou o Ballet), era a luta contra o etnicismo e ele raciocinou que colocando as etnias para dançarem juntas seria uma forma de cessar as disputas. Esses Ballets foram um laboratório incrível para o continente no processo de independência, pois os dirigentes tiveram essa intuição de que para construir o senso de nação deveriam passar pelo corpo. Se tivessem continuado com a ideia de laboratório de pesquisar o que é essa nação, poderiam ter ido muito mais longe... O problema foi que ao contrário acabaram usando esse recurso para formatar e definir a nação, e foi aí que começou o processo de se impor um discurso para o corpo...

Rose: Bom mas voltando a sua dança... como você inicia seus processos de criação?

Faustin: É sempre através de uma experiência… Depois em me debruço sobre a proposta, pesquiso referências históricas, políticas... Mas o ponto de partida é sempre uma necessidade íntima... Com “A Carga” por exemplo, eu nunca tinha feito solos antes, depois de 10 anos de companhia, eu comecei a pensar sobre como continuar... Eu fui ao Bilo passar um tempo com o meu pai, pois fazia muito tempo que eu não conseguia estar com ele... Mas eu nunca tinha pensado que isso viria a ser uma peça, porém quando retornei de lá a ideia me veio, e eu construí... Depois de dois anos eu retornei ao Bilo com outros artistas, e então fizemos o trabalho sobre “o mestre de tambor que não toca mais”, que eu cito em “A Carga”, pois ele mesmo proibido de tocar o tambor porque sua religião dizia que era satânico, ainda veio incentivar os outros tocadores... O Bilo é um lugar de sonho, de infância, e quando eu estava lá não sabia o que ia procurar, mas foi me deixando tocar pela experiência daquele lugar que fiz dois trabalhos... Então você pode ver, o ponto de partida não é um conceito, é sempre uma experiência, depois eu adiciono as reflexões e o trabalho vai se construindo.




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