ARTE DECOLONIAL – COMPREENDENDO A AESTHESIS DO SUL DO MUNDO
Texto de Rose Mara Kielela
Um
assunto muito falado no mundo artístico atualmente é a “arte decolonial”,
seguida por assuntos como “desobediência epistêmica”, “descolonização dos
museus”, “descolonização do imaginário”, entre outros. No entanto, dada a
proliferação dos termos pode ser interessante compreendermos um pouco do
processo histórico da opção decolonial, bem como suas implicações no campo da
estética e produção artística.
A
opção decolonial surgiu no terceiro mundo, justamente no momento de queda da
ideia de divisão desses três mundos, suas bases históricas fundam-se na
Conferência de Bandung 1955, onde 29 países de Ásia e África se reuniram para
encontrar alicerces e visões de um futuro comum que não fosse nem comunista,
nem capitalista, tratava-se de se desprender das principais narrativas
ocidentais. Em seguida ocorreu a Conferência dos Países Não Alinhados, em
Belgrado, 1961, na qual somaram forças com asiáticos e africanos, muitos países
latino americanos. Assim, a decolonialidade não se apresenta como um conceito
universal, ou um espaço onde se estabelece uma verdade, mas uma opção, abrindo
um novo modo de pensar que desvincula as cronologias estabelecidas pelos
paradigmas ocidentais mais recentes (moderno, pós-moderno, alteromoderno,
etc.). Isso não significa que a opção decolonial é alheia aos paradigmas, no
entanto, estes não representam referência de legitimidade epistêmica, por
exemplo, o conceito de contemporâneo não é uma base norteadora para as
iniciativas que tem como princípio a opção decolonial.
A singularidade epistêmica de qualquer projeto
decolonial é o fazer fronteiriço (Mignolo, 2011), constituindo-se por formas de
criação firmemente entrelaçadas com o conhecimento e a subjetividade, que
buscam superar a modernidade e seus princípios liberando-se das restrições
categoriais do fazer criativo. (Tlostanova, 2011)
Kalunga, Kalunga, Video Performance (2017) Lubanzadyo Mpemba Bula |
A frase com que Fanon encerra seu
livro Peles Negras, Máscaras Brancas (2008): “Oh corpo meu, faz de mim um homem
que sempre questiona!”, funda as categorias básicas da epistemologia
fronteiriça, ou seja, a percepção bio-gráfica do corpo negro no Terceiro Mundo,
erigindo uma política do conhecimento baseada ao mesmo tempo no corpo
racializado e nas histórias locais marcadas pela colonialidade, portanto, neste
contexto torna-se visível a corpo-política e a geo-política do pensamento que a
teologia cristã e a egologia (e.g. Cartesianismo) oculta, configurando-se então
como ponto de origem do pensamento/sensibilidade e do fazer fronteiriços
(Mignolo, 2011).
É
importante salientar que a supressão do “s”
na palavra “decolonial” marca a distinção entre o projeto decolonial
elaborado no eixo sul do mundo, e a ideia de histórica de descolonização,
relacionadas aos processos libertação nacional em diversos países, no período
da Guerra Fria (Ballestrin, 2013), assim, o projeto decolonial postula que além
da desocupação territorial, é necessário desnaturalizar a retórica da
modernidade que opera nos territórios colonizados, nomeadamente, a
colonialidade do ser (subjetividade), do sentir (aesthesis) e do saber (epistemologia) (Mignolo, 2010). Mignolo
(2010) explica que o significado da palavra ahesthesis
originária do grego antigo, gira em torno dos vocábulos, sensação, processo de
percepção, sensação auditiva, sensação gustativa e visual, e que a partir do
século XVII, é restringido a “sensação do belo”, com o nascimento da teoria
estética e do conceito de arte, para a qual Immanuel Kant deu imensa
contribuição. Esta operação cognitiva constituiu a colonização da aesthesis pela estética, uma vez que a
primeira é comum a todos os organismos viventes possuidores de sistema nervoso,
e a segunda é a uma versão teórica particular relacionados a produção de bens
simbólicos europeus. Na perspectiva decolonial a criatividade consiste em uma
maneira de liberar o conhecimento e o ser, e, portanto, a obra de arte tem por
princípio o mapeamento da geo-corpo-política do conhecimento, convertendo-se em
um canal de produção simbólica multi semântica, e ao mesmo tempo proveniente
das sensações e percepções do artista vivendo em seu tempo e seu espaço
(Amaral, 2017).
The Desire Project, Vídeo Arte (2016), Grada Kilomba |
Sendo
assim, a decolonialidade no campo da estética passa também pelo reconhecimento
de princípios criativos que estão presentes em povos situados fora do eixo
euro-estadunidense, compreendendo-os como processos válidos de construção de
conhecimento e de produção artística. Portanto, é importante salientar que o
fazer decolonial não se apoia apenas no que acontece atualmente, mas dialoga
ainda com os processos de resistência e manutenção cultural dos povos
colonizados durante esses mais de 500 anos de opressão, um exemplo disso, é a
noção de fazer fronteiriço presente na multidimensionalidade performativa
(Frigerio, 2002) que caracteriza diversas manifestações culturais dos povos
africanos e da diáspora, onde as diversas linguagens artísticas se entrelaçam
tendo como leitmotiv a reelaboração
das experiências cotidianas, e gerando à partir daí produções criativas que
tomam as mais diversas formas artísticas, que na maior parte das vezes não são
suportadas pelas categorias que denominam as linguagens artísticas no cânone
europeu. No entanto, a ahestesis
decolonial não se preocupa em “ancestralizar” o processo artístico, mas busca
ampliar o olhar do artista para um tempo relacional, que não é composto
linearmente e que passado, presente e futuro se interrelacionam no continuum da existência.
Soleil Ô, Filme (1967), Med Hondo |
Por
fim, como coloca Fanon (1968), a pessoa colonizada quando empreende sua
produção artística deve fazê-lo com o propósito de abrir o futuro, convidar a
ação e fundar a esperança. O fazer artístico decolonial não está comprometido
com a manutenção de categorias como “tradicional”, “primitivo”, “afro”, que são
utilizadas correntemente para diferenciar a obra produzida por um artista
pertencente às comunidades racializadas daquela produzida pelo artista europeu,
tais categorias servem justamente para reafirmar e manter a suposta imobilidade
criativa e cognitiva dos povos colonizados. Sendo assim, a opção decolonial
quando aplicada ao campo das artes, visa permitir aos povos racializados que se
enunciem a partir de si mesmos, num processo transtemporal de recriação contínua.
We live in silence, Video Arte (2017), Kudzanai Chiurai, |
Referências:
Amaral, J. (2017). Arte
decolonial. Pra começar a falar do assunto ou: aprendendo a andar pra dançar.
Disponível em: https://iberoamericasocial.com/arte-decolonial-pra-comecar-falar-do-assunto-ou-aprendendo-andar-pra-dancar/
Ballestrin, L. (2013).
América Latina e o Giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política.
N.11. Brasília. Maio- agosto. Pp. 89-117.
Fanon, F. (1968). Os
condenados da Terra. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro.
________ (2008). Peles
negras, máscaras brancas. EdUFBA: Salvador.
Frigérios, A. (1992) Artes Negras: Una perspectiva afrocéntrica. Estudos Afro-Asiáticos: Revista del Centro de Estudos
Afro-Asiáticos del Conjunto Universitario Cándido Mendes. Número 23, págs.
175-190. Rio de Janeiro, Brasil.
Mignolo, W. D. (2010). Aiesthesis
decolonial. Calle 14, vol.4, n.4, jan-jun. pg. 11-25.
____________ (2011).
Geopolítica de la sensibilidad y del conocimiento: Sobre (de) colonialidad,
pensamiento fronterizo y desobediencia epistémica. Disponível em: http://eipcp.net/transversal/0112/mignolo/es/print
Tlostanova, M. (2011)
La Ahesthesis transmoderna en la zona fronteiça euroasiática y el anti-sublime
decolonial. Calle 14, Vol. 5. Num. 6. Enero-Junio. Pp-10-31.
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