IGBÀDÚ – O CÉU E A TERRA, UM ESPETÁCULO NECESSÁRIO PARA A LISBOA DO SÉCULO XXI
Texto de Rose Mara Kielela
Há algum tempo podemos ver em Lisboa
um crescente interesse pela “cultura afro”, aulas de dança, de percussão,
tecidos africanos, turbantes, etc, transitam pelas ruas lisboetas
cotidianamente. Porém, muito desse interesse se dá no campo da necessidade
contemporânea da branquitude de re-inventar o “negro tradicional” para
encarcerá-lo novamente em uma identidade estanque no tempo, mais uma vez ditada
e limitada pelo olhar eurocêntrico. Como nenhum movimento acontece sem que haja
um contraponto, uma resistência, também podemos ver em Lisboa, uma
efervescência de grupos, debates, eventos, artistas, que colocam em cheque as
tensões raciais, e que mais do que tudo, se preocupam em enunciar um olhar
afirmativo sobre a negritude e a africanidade, e é justamente nessa linha que a
recém-nascida Cia. de Dança Afro Contemporânea Agadá atua.
Fundada pelos 3 bailarinos negrxs
Jorge Ciprianno, Lucia Afonso e David Amado, a companhia busca trazer um olhar
que visa transcender os pré-conceitos que giram em torno da corporeidade afro
no mundo da dança, que em sua maioria das vezes é entendida como tribal,
tradicional, ahistórica e sem necessidade de elaboração técnica ou teórica. Com
formações diversas os 3 bailarinos transitam entre o balé clássico, a dança
contemporânea, a capoeira, danças dos orixás do Candomblé Ketu, entre outras,
em uma pesquisa de movimento profunda e sólida.
Igbàdú
– O céu e a Terra, é o espetáculo de estréia da Cia. na cena cultural lisboeta,
e com certeza será um marco no âmbito da produção artística relacionada as
temáticas afro na cidade. Coreografado por Jorge Ciprianno, que é formado em Dança Moderna e Afro Contemporânea
pela Escola da Fundação Balé Folclórico da Bahia, ex- bailarino do Balé Folclórico da Bahia, e, durante cerca de seis
anos, bailarino do musical The Lion King (Alemanha/Londres) onde chegou a ser
Dance Captain durante dois anos, o espetáculo
tece diversas teias que modificam completamente o modo de fazer/ver arte
relacionada as questões africanas.
Primeiramente, porque Jorge assume
uma posição afro-futurista em sua criação, ao invés de denunciar as situações
de racismo vividas pelos afro-descendentes em Lisboa (ato constante nas
criações artísticas relacionadas a esta temática na cidade), o coreógrafo
escolhe se auto enunciar e afirmar sua identidade em palco criando um
espetáculo baseado na mitologia do povo Yorubá, que rege toda a ética
organizacional do Candomblé Ketu no Brasil. Igbàdú aborda o processo de criação
do mundo à partir da leitura do povo Yorubá, e evidencia aspectos complexos que
transitam na mitologia dessa etnia africana. As mitologias dos diversos povos
na terra revelam seus modos de conceberem os processos éticos que governam a
vida cotidiana, e ao nos colocar ante o Mito de Criação do mundo do povo
Yorubá, Jorge nos revela a compreensão deste povo sobre a geração da vida,
sobre o feminino, sobre gênero, sobre sexualidade, sobre a materialidade, e nos
oferece outros ponto de referência para repensar nossos lugares e valores
sociais.
Um outro aspecto que singulariza o
espetáculo é a composição cênica que transcende a habitual “dança afro”
conhecida pelos portugueses, e traz uma pesquisa de movimento e sonora baseada
nas danças dos orixás, mas em diálogo com outras técnicas que permeiam as
diferentes linhas da dança contemporânea na atualidade. Com isso Ciprianno nos
tira do lugar habitual da “africanidade tradicional”, “tribal”, sem história e
parada no tempo, para nos colocar ante uma corporeidade pulsante que se
reiventa a cada instante, transtemporal, porque entrelaça passado, presente e
futuro, num movimento circular que desconstrói a linha do tempo ocidental. No
contexto criado pelo espetáculo ,pensar ancestralidade não nos faz voltar ao
passado, mas nos faz ver o passado que habita em nossas ações presentes e nos
oferece bases para construir o futuro.
Mesclando experiência de vida e pesquisa
teórica, a elaboração dramatúrgica do espetáculo é fundamentada em estudos sobre a Cosmogonia e Mitologia Yorubá, tendo como eixo central o Candomblé, e fica a
cargo do Babalorisá Pedro Henrique Barbosa. Com um conhecimento profundo e
vivencial sobre estas temáticas, Pedro mergulha no universo de textos já
existentes sobre o mito da Criação do Mundo, e a partir destes aborda com muita
sensibilidade a questão da existência humana como fator de extrema importância
para a preservação da natureza e da vida.
Por fim, Igbàdú é um espetáculo histórico porque dá voz,
pensamento, ética e estética, a um povo que teve sua produção cultural e
simbólica, sistematicamente silenciada pelos processos de colonização e tráfico
de pessoas negras, perpetrados pelo Estado Português por quase quatro séculos, e
é necessário a todxs que têm curiosidade em conhecer um pouco mais sobre a
africanidade, àquelxs que questionam a dualidade de gêneros e opressão do
feminino na sociedade patriarcal, àquelxs que pesquisam as artes em perspectiva
africana e afro diaspórica, àqueles que querem construir outras formas de
pensar a vida… ou ainda, àquelxs que simplesmente querem fruir uma obra artística de
grande excelência num simples domingo à noite.
Ficha
Técnica:
Coreografia
– Direção Artística: Jorge Ciprianno
Assessoria
de Direção Artística: Pedro Barbosa
Assessoria
Cênica: Tathiane Mattos
Direção
Músical: Pedro Ferreira (Lascas Div)
Músicos:
André Piteiras, Lascas Div e Pedro Petronilho
Cantoras:
Carla Lima e Neya Castro
Figurino:
Mariana Desidério
Elenco:
Alice Duarte, Francesca Negro, Ingrid Santos, Joana Marques, Jay Jesus, Jorge
Ciprianno, Lúcia Afonso, Nary Santos, Sara Pina
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