CORPO NEGRO NA ESCOLA - A DANÇA COMO FERRAMENTA PARA UMA "REFORMA IDENTITÁRIA"
“Saber-ME
negra é viver a experiência de ter sido massacrado em MINHA
identidade, confundida em MINHAS perspectivas, submetida a exigências,
compelida a expectativas alienadas. Mas também é sobretudo a
experiência de comprometer-ME a resgatar MINHA história e recriar-ME
em MINHAS potencialidades”
(Tornar-se negro, de Neuza
Santos Souza Link para download)
Ring around the rosie - Ernie Barnes Link para conhecer! |
Inicio
esse texto em primeira pessoa e também coloquei a escrita de Neuza
Santos Souza em primeira pessoa porque acredito que só pessoas
conscientes de sua identidade podem constituir um coletivo, e no
momento em que vivemos, urge que as identidades sejam fortalecidas e
se tornem conscientes, pois só assim poderemos estabelecer noções
de coletividade na nossa configuração social, visando diminuir as
desigualdades.
Sou
mulher, negra, artista-educadora, artista cênica e ativista
cultural, me defino como artista cênica porque por trabalhar com
cultura afro-brasileira me vi na obrigação de desenvolver diversas
potencialidades para atender às demandas dessa forma de produção
artística. Assim, aos 29 anos tenho uma noção bem demarcada de
quem sou eu, que lugar ocupo na sociedade, quais são as minhas lutas
e meus objetivos. Sei também que sou uma metamorfose ambulante, mas
consigo identificar as mudanças que se operam em mim e compreendo
bem meus processos de transformação. Porém, essas noções não
surgiram da noite para o dia foram acontecendo ao longo do tempo,
através do meu encontro com pessoas que me ajudaram a enxergar essa
que sou agora. O contato com a arte e cultura negra sempre foram
cruciais nessas minhas metamorfoses, pois me ajudaram a tornar-me
negra, a tornar-me eu.
Por
perceber esse potencial transformador na arte, e por ter concluído
essa ideia por meio da minha própria experiência (e de outras
pessoas do meu meio de convívio), sigo no caminho que iniciei aos 15
anos, como artista pesquisadora e artista educadora, penso que estas
duas instâncias andam juntas e se retroalimentam. Meu foco de
pesquisa é corpo (sou formada em dança), mas o corpo numa
totalidade, o corpo constituído de sua carga racional, sensível,
psicológica, emotiva, antropológica, sociológica, histórica,
poética e política, que constitui e que ao mesmo tempo é
constituído pelo ambiente no qual está inserido.
O
corpo é o lugar primeiro do embate entre a pessoa negra e o mundo,
defino pessoa negra como todas as pessoas que possuem traços
fenotípicos negróides, que em escalas diferentes são discriminadas
negativamente no âmbito social, entendendo que as classificações
intermediárias entre “ser negro” e “ser branco” no Brasil
fazem parte de uma estratégia violenta de destituição da
identidade afro-brasileira que tem como resultado a desarticulação
deste grupo social. Sendo assim, podemos afirmar que ser negro é ser
violentado de forma contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma
dupla injunção: a de encarnar o corpo e os ideais do Ego do sujeito
branco e a de recusar, negar e anular a presença do corpo negro.
Assim,
a constituição da identidade do negro no Brasil é um problema
muito complexo, e está para além da ascensão econômica desse
grupo social, pois há marcas indeléveis no imaginário da população
brasileira que invisibilizam e subalternizam a imagem do negro
independente da sua classe social, como podemos perceber no caso
acontecido em 30 de março na UEMG Universidade do Estado de Minas
Gerais, no qual o estudante Pedro Henrique Afonso foi preso com
enorme truculência por parte da Polícia Militar local, 'suspeito de
roubar o próprio carro', apesar do protesto de colegas e
professores, Pedro foi levado algemado para a delegacia de forma
constrangedora e humilhante. Diante de tamanha violência precisamos
nos debruçar sobre os mecanismos de formação da identidade do
negro em relação a ele mesmo, e reformular a identidade social do
negro.
Esse
processo precisa acontecer em múltiplas vias incluindo a educação.
A escola é o primeiro ambiente social com o qual a criança tem
contato, ali através das relações que estabelece com colegas,
professores e funcionários, sua identidade será aos poucos
configurada. Entendendo que a formação da identidade é um processo
que é iniciado em casa nas relações familiares, e que, no entanto,
as relações sociais vividas é que confirmarão esses primeiros
traços identitários formados no seio familiar. No atual contexto,
os primeiros contatos sociais da criança negra são traumáticos e a
destituem das primeiras noções que ela teve de si mesma através do
contato com a mãe e a família. Como explica a psicanalista
lacaniana Neusa Souza Santos
A
identidade do sujeito depende em grande medida, da relação que ele
cria com o corpo. A imagem ou enunciado identificatório que o
sujeito tem de si estão baseados na experiência de dor, prazer ou
desprazer que o corpo obriga-lhe a sentir e a pensar.
Para
que o sujeito construa enunciados sobre sua identidade de modo a
criar uma estrutura psíquica harmoniosa, é necessário que o corpo
seja predominantemente vivido e pensado como local e fonte de vida e
de prazer. As inevitáveis situações de sofrimento que o corpo
impõe ao sujeito tem que ser “esquecidas”, imputadas ao acaso ou
a agentes externos ao corpo. Só assim, o sujeito pode continuar a
amar e cuidar daquilo que é, por excelência, condição de sua
sobrevida. (SOUZA N.S., pág. 6, 1983)
Assim,
como anunciado em 2014 pelo então Ministro da Educação Roberto
Janine Ribeiro, precisamos construir uma escola pós-racista, que
inclua o respeito a diversidade e especificidades étnico raciais.
Apesar de termos a lei 10.639/03, que é o primeiro passo rumo a
escola pós-racista, sabemos que a instauração desta no ambiente
escolar ainda é muito negligenciada. Entre as diversas formas de
negligência, podemos salientar que no âmbito criativo a arte e
todas as atividades de manifestação da subjetividade por parte dos
alunos no ambiente escolar, obedecem a métodos e padrões
eurocêntricos. A permanência do aluno negro no ambiente escolar
(seja ensino fundamental/médio ou universitário) é sempre um
processo extremamente doloroso de inferiorização e desestruturação
da identidade, pois nos livros didáticos os grandes saqueadores e
assassinos são considerados heróis, mesmo que indiretamente são
exaltados os nomes dos escravizadores, e o aluno vê a sua identidade
refletida em figuras que o subalternizam e inferiorizam. Ele não se
vê culturalmente representado nos livros didáticos de forma
positiva, o ambiente escolar foi formatado para domesticá-lo e
fazê-lo saber se comportar como o “outro”, o “herói” o que
possui a cultura dominante; as datas comemorativas tratam-se de
feitos históricos do “outro”, de dias considerados religiosos
para o “outro”, de instauração do sistema político do “outro”
e assim sucessivamente, num processo “sutil” de negação de sua
existência sócio cultural.
Cultura
e arte, são pensadas muitas vezes como reflexo das relações
sociais, no entanto, podemos afirmar que ambas produzem e são
produzidas por contextos, numa relação de entrelaçamento entre o
imaginário e a realidade, atuando sobre a formação da identidade
dos sujeitos através da identificação com imagens, sons e
situações. Quando relacionamos de forma transversal cultura, arte e
educação, temos a possibilidade de problematizar, questionar e
reorganizar de forma profunda pontos de vista e referências
simbólicas que interferem diretamente na formação de identidades
individuais e coletivas. Sendo assim, escolhi a dança como
ferramenta para estabelecer essas relações e refazer-me ao mesmo
tempo que refaço meu ambiente.
Quando
o negro africano chega à terras estrangeiras, ele chega possuindo
apenas o seu corpo como forma de expressão, daí as manifestações
culturas diaspóricas de grupos de negros espalhados pelo continente
americano terem consideráveis ênfases corporais. A vivência das
danças tradicionais afro-brasileiras e africanas são atividades
físicas de alta intensidade e fisiologicamente possuem a capacidade
de alterar significativamente a noção corporal do sujeito que a
prática. Pois, nos exercícios de alta intensidade produzimos
cerebralmente grandes quantidades de endorfina, o hormônio opióide
responsável pelo controle da dor e pela sensação de bem estar do
organismo, no seu processo de liberação está envolvida a promoção
de um efeito analgésico de moléstias e também a melhora de
aspectos emocionais. Essa informação nos faz entender o complexo
processo de resistência presente nas práticas corporais de origem
afro diaspóricas, bem como sua função histórica de manutenção
da vida. Sendo assim, para além da estrutura simbólica e política
das danças tradicionais afro-brasileiras e africanas, temos questões
fisiológicas que se trabalhadas de forma contundente no ambiente
escolar podem exercer grande impacto sobre a estruturação
identitária de crianças e jovens negros, pois atua em níveis
corporais profundos combatendo exatamente a sensação de “desprazer”
corporal citada anteriormente.
Todas
essas questões apontam para o fato de que devemos nos atentar, e nos
abrir para um processo de “reforma identitária” no Brasil, que
deve iniciar no ambiente escolar pois é nesse momento o maior espaço
de convívio social das novas gerações. O mito romantizado da
mestiçagem já não faz nenhum sentido, sim somos mestiços! Mas
provenientes de relações dolorosas, em 99% de estupros sucessivos
de mulheres negras e indígenas. Sendo assim, precisamos ter coragem
de olhar nossa história com maior senso de realidade e reconstruí-la
retomando os paradigmas que nos legaram nossos antepassados negros e
indígenas para restabelecer a conexão com a teia etérica que nos a
todos ante o destino da co-existência, da formação da comunidade
humana.
Head over heels - Ernie Barnes |
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