UM OLHAR DA SENZALA SOBRE A OBRA DE GILBERTO FREYRE



No dia 24-05-2017 sofri uma intervenção do segurança do Super Mercado Pingo Doce na Reboleira suspeitando da minha presença no local, no mesmo dia fui ao debate Racismo e Cidadania dentro da Programação do Lisboa Capital Iberoamericana da Cultura, onde eu e os presentes pudemos constatar o saudosismo, e a noção colonialista que o povo português simplesmente não consegue superar, no sábado vi o anúncio do lançamento de um tal “Café Colonial”, no palácio do Príncipe  Real que do menu a música busca manter pulsante nas veias portuguesas a narrativa do lusotropicalismo e dos “descobrimentos”, dias depois recebemos a visita do cacique Ava Taperende do povo  Guarani-Kaiowá que vem a Europa suplicar a ajuda do seu povo que está morrendo na mão de ruralistas brasileiros, hoje pela manhã acordo com um anúncio da Radio Cidade que ao pretender lançar um jogo nas redes sociais incorre num ato racista e coloca a imagem de uma mão branca apontando um revólver para a cabeça de uma pessoa negra.

O que todos esses fatos e eventos, descritos assim, de forma sucinta e aleatória, tem em comum?

Esses eventos são as pequenas mostras cotidianas de um sistema que literalmente mata diariamente pessoas negrxs, e apontam que há uma visão de mundo que insiste em existir e precisa ser superada. Apontam que os conceitos se tornam ultrapassados e que conforme o mundo se movimenta as mentes também precisam se movimentar. Apontam que estamos sob domínio de uma cultura necrófila, que pretende exaltar a morte e o parricídio como modus operandi. Apontam que precisamos revisitar a história com urgência...

Como atitude a ser tomada em relação a isso, precisamos sair da lógica subalterna e gritar, questionar, interromper as falas que pretendem nos silenciar, objetificar e assassinar, e, ao mesmo tempo, produzir informações que se contrapõem a essas narrativas ultrapassadas que visam encher de glamour a barbárie cometida contra os povos racializados de África e das Américas.

Assim, com este artigo pretendo contextualizar o meu grito (e de alguns outrxs pretxs indignadxs) no final do debate Racismo e Cidadania, e ao mesmo tempo proporcionar a quem me lê algumas informações sobre Gilberto Freyre e sua obra que são propositalmente desconhecidas do público em geral. É interessante pensarmos que estamos no século XXI, muitas teorias do século passado já estão ultrapassadas, ou não fazem sentido no tempo presente, ou ainda, são falaciosas e fruto de um discurso unívoco, caso em que se encaixa as teorias de Freyre. Inúmeros teóricos brasileiros já apresentaram argumentos que colocam por terra as teorias de Gilberto Freyre, no entanto, na contemporaneidade ainda há uma grande insistência em uma edificação de sua obra, fato que acredito estar ligado a vontade de manutenção de uma ideologia de superioridade racial por parte da branquitude, que simplesmente ignora xs teóricxs e acadêmicxs negros que abordam as questões raciais no Brasil com profundidade, e eternizam os estudos de Freyre.

Levando em conta que a história é movimento, nos últimos 15 anos no Brasil, houve um grande crescimento de estudos sobre as questões raciais, boa parte deles produzidos por pessoas negras que adentraram aos círculos acadêmicos graças as políticas afirmativas. Houve muitas alterações e atualizações da história brasileira e dos vários temas que estão inseridos nela como colonização, racismo, tensões sociais e etc. Neste momento a narrativa está sendo construída pela Senzala, e obviamente contradiz a versão da Casa Grande, lugar de onde ecoa a voz de Gilberto Freyre.

Apontarei alguns pontos da obra de Freyre que demonstram a falta de precisão da visão do autor sobre a formação da população brasileira, a ação colonial portuguesa e o colonialismo. Para não se tornar um artigo extenso demais, farei a publicação em duas partes, na primeira apresento alguns argumentos relacionados a história do sistema escravista português no Brasil que desmentem por completo a ideia “bom colonizador português”, e da relação afetiva entre escravizadores e escravizadas tão defendida por Freyre, e na segunda apresentarei as relações políticas existentes entre Gilberto Freyre e os ditadores Getúlio Vargas (Brasil) e António de Oliveira Salazar (Portugal), e o desenvolvimento do conceito de "lusotropicalismo". Segue a primeira parte:



Zumbi - Líder do Quilombo dos Palmares




1 - Tensões raciais entre colonizadores portugueses e pessoas escravizadas no Brasil:

Há uma insistência constante de muitxs teóricxs brasileirxs em afirmar que houve uma passividade dos sujeitos escravizadxs em relação à sua condição, e em esconder as revoltas e lutas dos mesmos por libertação. As relações entre escravizadores e escravizadxs no Brasil nunca foram pacíficas ou benevolentes. Há inúmeros relatos da crueldade crescente dos escravizadores e das revoltas dxs escravizadxs, sendo assim, a suposta paz e harmonia que Freyre relata em Casa Grande Senzala nunca existiu.

Segundo Clóvis Moura a prática principal de resistência dxs escravizadxs era a organização dos Quilombos, que segundo o Rei de  Portugal, em resposta ao Conselho Ultramarino em 2 de dezembro de 1740, definia-se por “todo ajuntamento de negros fugidos que passem de 5 pessoas, em parte despovoada...”, o autor aponta ainda que como formas de resistência eram comuns as práticas de assassínios de escravizadores, de capitães-do-mato, o suicídio, as fugas individuais, as guerrilhas e insurreições urbanas que se alastraram durante todo o período escravocrata. Um exemplo disso, podemos ver no relato de Afonso Arinos de Mello Franco citado por Moura:


“...atacavam aos próprios senhores. Assim, em Rio Bonito, o fazendeiro José Martins da Rocha Portela foi morto por seus negros. Tentativas de morte também havia, como a que se deu como o fazendeiro Miguel Teixeira de Mendonça, de Barra Mansa, ou com o sinhô-moço filho do fazendeiro José Joaquim Machado, do local Murundu, em Campos.”


Uma das rebeliões mais expressivas da história brasileira resultou no Quilombo dos Palmares, que teve origem por volta de 1580, e chegou a ter cerca de 20 mil habitantes em 1671, com um sistema político e econômico próprio, que apesar dos constantes ataques sobreviveu por mais de 100 anos, até a captura de seu líder Zumbi em 1695.

Para além da revolta dxs escravizadxs temos arquivos de documentos que comprovam a extrema crueldade do sistema escravocrata português, como podemos verificar no Alvará em forma de lei sancionado em 7 de março de 1741 pelo Rei de Portugal, que por considerar um insulto a fuga dxs escravizadxs permitia ao escravizador o direito marcar a letra F na testa do fugitivo com ferro em brasa, e no caso de fugas reincidentes cortar uma orelha.

Marcar xs escravizadxs com ferro em brasa era cotidiano para o escravizador, como relata Joaquim Nabuco, os anúncios de escravizadxs fugidxs muitas vezes tinham como descrição as características físicas resultantes dos terríveis castigos físicos, Nabuco salienta que no período pré abolição por volta 1875 a justiça imperial luso-brasileira não conseguia julgar os milhares de crimes perpetrados contra escravizadxs, uma vez que nessa época apesar da resistência dos fazendeiros e do Imperador, a Inglaterra pressionava politicamente para que houvesse o fim da escravidão em terras brasileiras. É interessante compreender que Nabuco traz em sua narrativa o apelo a imoralidade da escravidão, e naquele momento todas as instituições basilares da sociedade luso-brasileira, em destaque a igreja católica, possuíam pessoas escravizadas e as punia duramente, em contrapartida havia um caos reinante de constantes rebeliões por parte dxs escravizadxs que geravam uma extrema instabilidade na sociedade nascente. (Quando falo sobre a sociedade luso-brasileira, falo do período a partir de 1807, quando a corte portuguesa se transferiu para o Brasil por ocasião de Portugal estar ocupado pela Espanha, e nessa época a população brasileira com direito a cidadania apesar de ser um parcela ínfima da população, era composta majoritariamente por escravizadores europeus, em sua maioria portugueses. Apesar do “Grito de Independência” ter sido dado pelo Imperador português Dom Pedro I em 1822, que manteve relações “estreitíssimas” como a coroa portuguesa, o Brasil só deixa de ser governado pela coroa portuguesa em 1889 com a expulsão de Dom Pedro II e a família real portuguesa das terras brasileiras).

Para garantir a extração em massa de ouro de muitas minas na cidade de Ouro Preto, meninos entre 7 e 10 anos de idade eram castrados para não crescer e ter tamanho suficiente para passarem nos túneis subterrâneos estreitos que levavam a essas minas. Pelourinhos, as cabeças de ícones das rebeliões como Zumbi, por exemplo, cortadas e exibidas em praça pública depois da sua captura, tortura e morte, corpos chicoteados publicamente demonstram a “cordialidade e benevolência” presente na relação entre escravizadores portugueses e escravizadxs. Sem a necessidade de se alongar muito, como demonstrado, é completamente descabida a ideia de Freyre sobre a co-existência pacífica entre escravizadores e escravizadxs, bem como de alguma benevolência por parte dos escravizadores portugueses.







2 - Imaginação freiryana sobre as relações afetivas entre escravizadores e escravizadas:

Uma outra tese que tem sido há muito desmontada entre xs teóricxs é a da relação amorosa romântica entre escravizadores e escravizadas. Como afirma Nabuco 99,9% das relações se davam por estupros, uma vez que o filho da escravizada, apesar de também ser filho do escravizador, era vendido no mercado de pessoas. As mulheres tinham preços mais altos quando novas, pois para o escravizador seu ventre era lucro, que via estupros sucessivos do próprio escravizador ou de comandados seus, daria luz à pessoas consideradas “crias” que seriam vendidas para serem escravizadas. O aborto também era punido severamente uma vez que era considerado dano aos lucros do escravizador.Como coloca Davis no período da escravidão, as mulheres negras realizavam aborto para não ver os seus filhos terem destinos iguais ao seu, se fossem amas de leite eram obrigadas a abortar para dar exclusividade de amamentação para o filho do escravizador. Muitas mulheres escravizadas recusavam-se a trazer crianças ao mundo do trabalho forçado interminável, onde as correntes, os chicotes e o abuso sexual das mulheres eram as únicas condições de vida.

Ana Cláudia Lemos Pacheco apresenta na sua obra Mulher Negra: Afetividade e Solidão, argumentos que demonstram o anacronismo presente na obra de Gilberto Freyre em respeito a relação existente entre escravizadores e escravizadas. A autora afirma que no campo relacional, a obra freyriana legitima o dito popular “branca para casar, mulata para f.... e negra para trabalhar”, e enfatiza que a miscigenação brasileira é uma prática cultural que se realiza muito mais pela preferência afetivo-conjugal de homens negros por mulheres brancas, do que ao contrário, ou seja, hierarquiza as relações raciais reforçando e dando suporte a teses racistas.

Para além disso, a autora ainda afirma que as relações entre escravizadores e escravizadas estavam longe de ser “suaves” como afirma a obra freyriana, mas estavam impregnadas de um violência estruturadora do sistema escravocrata, que sobrevivia da exploração econômica dos escravizados, no caso da mulher negra era conjugada a exploração econômica e sexual, sendo usada pelo escravizador como objeto de desejo depositório de todo tipo de taras sexuais.

Uma outra pesquisadora, a antropóloga Lélia González apresenta argumentos que demonstram o quanto a obra de Gilberto Freyre aborda a realidade brasileira de forma muito distante da realidade. González enfatiza que o racismo e o sexismo eram os pilares dos sistemas de opressão gerados no escravismo e perpetuados após a abolição. Argumenta ainda que o papel das mulheres negras em lutas organizadas contra a escravidão – as fugas, os motins, as rebeliões e a formação dos Quilombos – demonstravam uma reação à dita docilidade-cordialidade/submissão dxs negrxs e das mulheres escravas contra a família patriarcal branca.

Segundo as pesquisadoras aqui citadas, as relações afetivas entre brancos e negras no Brasil Colonial eram inexistentes, muito pelo contrário essas relações geraram, uma miscigenação “forçada” que foi construída através da violência física-sexual e psicológica praticada contra as mulheres negras, como fruto da lógica do sistema escravista português.



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