A ARTE NEGRA E O PARIR DE MUNDOS POSSÍVEIS
Essas entre outras perguntas estão sempre
presentes nas discussões, sendo assim, é necessário nos debruçarmos um pouco
sobre as mesmas, não na intenção de dar uma resposta “definitiva”, mas para
movimentar os raciocínios e gerar outras perspectivas possíveis.
Uma questão primeira é que para adensarmos as discussões
em “arte negra” é necessário “desuniversalizar” as ideias, e perceber que os
diversos discursos artísticos estão comprometidos com visões múltiplas de mundo.
Mundo este que está em movimento constante para as mais diversas direções,
sendo assim, não é possível termos um movimento unificado em qualquer campo de
conhecimento ou de produção material… Tudo se move para as mais diversas direções,
seja em movimentos expansionistas e transgressores do statuos quo, movimentos
oscilantes entre transgressão e manutenção das ideias vigentes, em movimentos
conservacionistas e concêntricos, mas ainda assim, movimentos… enfim, o
movimento está sempre presente, pois o esforço existe seja para manutenção, oscilação ou transgressão… e se há esforço há movimento.
O período de 1940 a 1960 é rico em movimentos de
reflexão sobre a condição e identidade negra no mundo através das artes, não
que esse seja um começo, pois a luta negra é existente desde as grandes
invasões do continente africano e a arte produzida por africanos seja na
diáspora ou no continente, sempre esteve comprometida com a ligação entre a
vida vivida e a vida possível, no entanto, é nesse momento histórico que esses movimentos e
reflexões começam a “aparecer” na imprensa e ocupar a cabeça de pessoas que até
então eram cegas para esses assuntos. O Black Art movimento dos artistas negros
dos Estados Unidos, Les Ballets Africaines na Guiné Conacry, o TeatroExperimental do Negro no Brasil, a Negritude de Senghor no Senegal, VivianeGuathier e sua Escola de Dança no Haiti, entre muitos outros movimentos e
artistas das mais diversas linguagens, estiveram em ação no mundo, deixando
rastros de atitudes artístico-filosóficas que caracterizam o que venha a ser a
produção de arte negra no mundo atual.
Quando falamos de arte negra falamos de uma
produção que está comprometida com a visão afroperspectivista de mundo, que
segundo Noguera, está ligada a noção filosófica de
que pensar é movimento e que ao invés de buscar a verdade busca-se a manutenção
do movimento, ou seja, a obra de arte neste caso está comprometida em gerar
signos sensíveis que provoquem a movimentação do pensamento, não para chegar a
um determinado ponto, mas para continuar em processo de reflexão, sendo assim
se configura como ato provocativo, seja desvelando uma realidade da vida
cotidiana, seja gerando perspectivas de realidades possíveis. Do RAP dos Racionais Mc's, aos espetáculos de dança contemporânea como a obra Le Cargo de FaustinLinyekula esses traços se fazem presentes.
Sendo assim, o processo de criação
dessas obras não é gerado por um conceito que culminará na produção artística,
mas na experiência que vai gerar a criação artística que por sua vez vai
provocar a geração de inúmeros conceitos. A experiência no entanto, não está
ligada apenas a ação vivida no “corpo a corpo” com o mundo, mas no pensamento
que se move incessantemente e é entendido como ação. Ação e pensamento não
estão separados, são ao mesmo tempo, assim a obra artística negra é açãopensamento
no mundo, reverberando outras realidades possíveis, um exemplo dessa relação é o
espetáculo de Teatro Ida do Coletivo Negro, onde a personagem Ida como
arquiteta negra se debate com a questão de renunciar aos moldes coloniais de
construção civil presentes no século XXI, no entanto, a dramaturgia da peça tem
esse conflito principal atravessado por muitas outras questões que giram em
torno da vida de uma mulher negra que contraria as estatísticas, se forma, e
atua na sua área de formação. No
entanto, a noção de criar espaços, de construir, de edificar, de planejar, ganham
contornos simbólicos que vão muito além de uma simples “história de arquiteta”,
servindo como mote para movimentos profundos no pensamento sobre a condição e
modo de vida da mulher negra.
Esteticamente essas obras se configuram das mais
diversas formas, por vezes borrando as fronteiras entre as linguagens ou transgredindo completamente essas mesmas fronteiras, pois também a noção
de fronteira na campo das artes negras não é algo que faça muito sentido, pois
fronteira é demarcar, limitar o movimento, parar em um determinado ponto, e a
arte negra está comprometida com o movimento para gerar mais movimento,
assim a produção negra deixa-se ir até
onde x artista sente que vai deixar ecos pulsantes de possibilidades, onde a
obra sai delx e vai ser recriada na sua
audiência, que não é passiva mas co-participante do seu fazer.
A arte negra também não se expressa pelos gêneros,
estilos ou modalidades que a arte ocidental estabelece em sua linha de tempo,
na produção artística afroperspectiva o tempo é carregado de Sankofa, ou seja,
passado, presente e futuro entrelaçados na vivência do hoje, como podemos
perceber na dramaturgia corporal do espetáculo de dança contemporânea Afro
Dites de Patrick Acogny, onde os movimentos do Sabar (dança “tradicional” do
Senegal), são recriados para problematizar a imagem da mulher senegalesa
contemporânea.
Por fim, não basta ser negro para produzir “arte
negra”, há que se mobilizar um emaranhado de noções calcadas na experiência de vida, no lugar que Franz Fanon nomeia como zona do não ser, onde a pessoa se vê constatemente destituída da sua humanidade e
através do ato artístico se afirma, se reconstrói, se humaniza, criando espaços
de transcendência, parindo constantemente o mundo onde deseja viver no ato artístico – essa atitude
remonta a tempos ancestrais no campo de produção das artes negras, onde o “tradicional”
e “contemporâneo” são conceitos reducionistas demais para designar as mesmas.
Quanto a questão “se há uma arte negra, então
podemos dizer que há uma ‘arte branca’?” a resposta é “SIM, sem dúvida!”, mas dessa pergunta quem deve se
ocupar é a branquitude, que precisa reconhecer o quão singular e particular é a
sua existência no mundo e que portanto, seus conceitos, ideias, modos produção
não podem ser generalizados e tomados como parâmetro para “olhar” outros
mundos que existem em consonância com o seu.
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