A ARTE NEGRA E O PARIR DE MUNDOS POSSÍVEIS




Nas mais diversas linguagens artísticas, quando é proposta alguma discussão sobre a “arte negra”, algumas perguntas são recorrentes, como por exemplo: “existe uma dança (cinema, teatro, artes visuais…) negra?”, “se há uma arte negra, então podemos dizer que há uma ‘arte branca’?”, “o que carateriza uma obra de ‘arte negra’?”, “todo negro artista faz ‘arte negra’?”….
Essas entre outras perguntas estão sempre presentes nas discussões, sendo assim, é necessário nos debruçarmos um pouco sobre as mesmas, não na intenção de dar uma resposta “definitiva”, mas para movimentar os raciocínios e gerar outras perspectivas possíveis.
Uma questão primeira é que para adensarmos as discussões em “arte negra” é necessário “desuniversalizar” as ideias, e perceber que os diversos discursos artísticos estão comprometidos com visões múltiplas de mundo. Mundo este que está em movimento constante para as mais diversas direções, sendo assim, não é possível termos um movimento unificado em qualquer campo de conhecimento ou de produção material… Tudo se move para as mais diversas direções, seja em movimentos expansionistas e transgressores do statuos quo, movimentos oscilantes entre transgressão e manutenção das ideias vigentes, em movimentos conservacionistas e concêntricos, mas ainda assim, movimentos… enfim, o movimento está sempre presente, pois o esforço existe seja para manutenção, oscilação ou transgressão… e se há esforço há movimento.
O período de 1940 a 1960 é rico em movimentos de reflexão sobre a condição e identidade negra no mundo através das artes, não que esse seja um começo, pois a luta negra é existente desde as grandes invasões do continente africano e a arte produzida por africanos seja na diáspora ou no continente, sempre esteve comprometida com a ligação entre a vida vivida e a vida possível, no entanto, é nesse momento histórico que esses movimentos e reflexões começam a “aparecer” na imprensa e ocupar a cabeça de pessoas que até então eram cegas para esses assuntos. O Black Art movimento dos artistas negros dos Estados Unidos, Les Ballets Africaines na Guiné Conacry, o TeatroExperimental do Negro no Brasil, a Negritude de Senghor no Senegal, VivianeGuathier e sua Escola de Dança no Haiti, entre muitos outros movimentos e artistas das mais diversas linguagens, estiveram em ação no mundo, deixando rastros de atitudes artístico-filosóficas que caracterizam o que venha a ser a produção de arte negra no mundo atual.
Quando falamos de arte negra falamos de uma produção que está comprometida com a visão afroperspectivista de mundo, que segundo Noguera, está ligada a  noção filosófica de que pensar é movimento e que ao invés de buscar a verdade busca-se a manutenção do movimento, ou seja, a obra de arte neste caso está comprometida em gerar signos sensíveis que provoquem a movimentação do pensamento, não para chegar a um determinado ponto, mas para continuar em processo de reflexão, sendo assim se configura como ato provocativo, seja desvelando uma realidade da vida cotidiana, seja gerando perspectivas de realidades possíveis. Do RAP dos Racionais Mc's, aos espetáculos de dança contemporânea como a obra Le Cargo de FaustinLinyekula esses traços se fazem presentes.



 Sendo assim, o processo de criação dessas obras não é gerado por um conceito que culminará na produção artística, mas na experiência que vai gerar a criação artística que por sua vez vai provocar a geração de inúmeros conceitos. A experiência no entanto, não está ligada apenas a ação vivida no “corpo a corpo” com o mundo, mas no pensamento que se move incessantemente e é entendido como ação. Ação e pensamento não estão separados, são ao mesmo tempo, assim a obra artística negra é açãopensamento no mundo, reverberando outras realidades possíveis, um exemplo dessa relação é o espetáculo de Teatro Ida do Coletivo Negro, onde a personagem Ida como arquiteta negra se debate com a questão de renunciar aos moldes coloniais de construção civil presentes no século XXI, no entanto, a dramaturgia da peça tem esse conflito principal atravessado por muitas outras questões que giram em torno da vida de uma mulher negra que contraria as estatísticas, se forma, e atua na sua área de formação. No entanto, a noção de criar espaços, de construir, de edificar, de planejar, ganham contornos simbólicos que vão muito além de uma simples “história de arquiteta”, servindo como mote para movimentos profundos no pensamento sobre a condição e modo de vida da mulher negra.


Esteticamente essas obras se configuram das mais diversas formas, por vezes borrando as fronteiras entre as linguagens ou transgredindo completamente essas mesmas fronteiras, pois também a noção de fronteira na campo das artes negras não é algo que faça muito sentido, pois fronteira é demarcar, limitar o movimento, parar em um determinado ponto, e a arte negra está comprometida com o movimento para gerar mais movimento, assim  a produção negra deixa-se ir até onde x artista sente que vai deixar ecos pulsantes de possibilidades, onde a obra sai delx  e vai ser recriada na sua audiência, que não é passiva mas co-participante do seu fazer.
A arte negra também não se expressa pelos gêneros, estilos ou modalidades que a arte ocidental estabelece em sua linha de tempo, na produção artística afroperspectiva o tempo é carregado de Sankofa, ou seja, passado, presente e futuro entrelaçados na vivência do hoje, como podemos perceber na dramaturgia corporal do espetáculo de dança contemporânea Afro Dites de Patrick Acogny, onde os movimentos do Sabar (dança “tradicional” do Senegal), são recriados para problematizar a imagem da mulher senegalesa contemporânea.


Por fim, não basta ser negro para produzir “arte negra”, há que se mobilizar um emaranhado de noções calcadas na experiência de vida, no lugar que Franz Fanon nomeia como zona do não ser, onde a pessoa se vê constatemente destituída da sua humanidade e através do ato artístico se afirma, se reconstrói, se humaniza, criando espaços de transcendência, parindo constantemente o mundo onde deseja viver no ato artístico – essa atitude remonta a tempos ancestrais no campo de produção das artes negras, onde o “tradicional” e “contemporâneo” são conceitos reducionistas demais para designar as mesmas.
Quanto a questão “se há uma arte negra, então podemos dizer que há uma ‘arte branca’?” a resposta é “SIM,  sem dúvida!”, mas dessa pergunta quem deve se ocupar é a branquitude, que precisa reconhecer o quão singular e particular é a sua existência no mundo e que portanto, seus conceitos, ideias, modos produção não podem ser generalizados e tomados como parâmetro para “olhar” outros mundos que existem em consonância com o seu.


Para saber mais: 

Denegrindo A Filosofia: O Pensamento Como Coreografia De Conceitos Afroperspectivistas. Autor: Renato Noguera.

As Danças Negras ou as Veleidades para uma Redefinição das Práticas das Danças da África.  Autor: Patrick Acogny.





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