PÉ NA TERRA, VISTA NO MAR... O PROCESSO DE RE-CONSTRUIR-SE ATRAVÉS DA EXPERIÊNCIA...



    
       Estou ainda num processo de digerir minha experiência, eu tinha me comprometido (comigo mesma) a postar um texto por dia, mas nesse processo percebi que não sou linha de produção e que inclusive o respeito pela experiência se dá no momento em que a gente se permite aprofundar as sensações e extrair um pouco mais do que as primeiras impressões... Participar dessa vivência na École de Sables foi não só uma experiência profissional muito importante para mim, mas também uma vivência pessoal de cura muito importante e determinante para o resto da minha existência...

    Como já relatei em um texto anterior, a École de Sables fica ao lado do mar, de alguns pontos da escola, inclusive, podemos ver o mar... Já no primeiro dia que cheguei procurei uma brechinha de tempo na hora do intervalo e fui ver o mar, quando me vi em frente aquela imensidão chorei!

    Um choro muito sentido, que parecia estar preso a anos, séculos talvez... De me lembrar ainda choro... Mas naquela ocasião inicialmente pensei ser um choro de emoção por ter finalmente chegado ao Senegal depois de toda uma epopeia, e acredito que inicialmente tenha se passado isso no meu coração... No entanto foi um choro longo, que me transportou para além das questões de dificuldade de chegar, e sensação de potência por alcançar meu objetivo...

    Meus pés tocavam a areia e eu sentia em meu coração a sensação de um lugar conhecido, de um lugar ao qual eu pertencia também, ao mesmo tempo que olhar o Oceano e imaginar que lá do outro lado estava o meu chão me fazia ter a sensação de ser muito muito muito pequena ao mesmo tempo que muito muito muito grande, e em algum momento tive a sensação de que era tudo a mesma terra, lá não era diferente daqui, era como se fossem partes complementares... E eu parte de tudo isso!

    Em meio a essa torrente de emoções com ares de ligação cósmica, comecei a sentir uma dor imensa, profunda, que tornou meu choro convulsionado... Sem despregar meus olhos do mar! Fiquei atordoada e confusa! Me veio o impulso de pedir aos meus antepassados perdão pelo que tinha ocorrido com eles, a escravidão, as torturas inimagináveis, as perdas afetivas, a perda da liberdade... E nessa minha conversa com as forças da vida/morte lhes disse que continuaria guardando em meu coração às suas memórias... Me acalmei e voltei para a escola... E a partir desse momento iniciou-se um processo muito interessante no meu interior, que continua reverberando e, acredito eu, que continuará para o resto da vida...

    Relacionando essa experiência com muitas das coisas que tenho lido sobre a questão da formação de identidade e subjetividade do negro brasileiro, acredito que como coloca Dr. Hélio Santos em seu livro A busca de um caminho para o Brasil: A trilha do círculo vicioso (mais informações:https://books.google.com.mx/books/about/A_busca_de_um_caminho_para_o_Brasil.html?hl=pt-BR&id=kOvmQQixg6sC), a medicina ensina que, ocorrendo dor (causada por infecção), às vezes é necessário lanetar, isto é, perfurar o local inflamado, a fim de que as impurezas (pus) possam sair, o que poderá provocar ainda mais dor. Depois de limpa a ferida, vem a cicatrização. E sim, o processo de colonização e escravização empreendido pelos europeus são crimes contra a humanidade, que deixaram uma imensa ferida no seio da comunidade humana, ferida esta que precisa ser remexida e limpa para cicatrizar. Por conseguinte, não há como curar a ferida se não reconhecemos a sua existência, se não sabemos onde está a ferida como vamos curá-la? E quando a encontramos precisamos tratá-la, reconhecer as impurezas para limpar... Há pessoas que dirão “Mas Rose você ainda está na dor, na vitimização, isso já passou!” como já escutei a pouco... Sinto informar mas não, não passou... 350 anos de barbárie, dizimação de populações e sofrimentos inimagináveis não serão apagados da história com tanta facilidade, pois essa é uma ferida que dói na alma e reflete muito negativamente na vida de todas as gerações  tanto negras quanto brancas que caminham sobre a terra nesse momento, que por esse processo de disseminação de ódio foram destituídos da sua humanidade... Sim, as gerações brancas também foram destituídas de sua humanidade uma vez que no papel de opressores perderam a capacidade de se identificar com o outro, com o diferente, de aprender outras formas de vida, se tornaram a imagem da barbárie e da insensibilidade, e as poucos os traços culturais gerados por essa perda estão transformando a terra num lugar inabitável, pois os sistemas gerados pela visão eurocêntrica são sistemas de dizimação da vida, e é um fardo muito pesado para as gerações atualmente mais conscientes da descendência branca carregar... Ver-se refletido no espelho de barbárie dos antepassados também é uma dor imensa! Mas é uma dor necessária para que finalmente possamos transformar os modos de vida que não servem mais...

    No entanto, só olhando nesse espelho é que poderemos perceber o que precisa ser mudado e transformado para então nos recriarmos como comunidade humana, respeitando e reconhecendo o direito de existência do outro.

    Há quem vá dizer também, “E o que isso tem a ver com a dança Rose?”. Eu respondo: o corpo é o primeiro local de embate entre a pessoa negra e o mundo. Os constantes ataques que uma criança sofre relacionados a sua imagem dentro dos mais diversos ambientes (as vezes até dentro da própria casa), enfraquecem de forma determinante sua autoconfiança, sua autoestima, deformam sua auto imagem, provocando dificuldades de aprendizagem e inibição corporal, entre outras sequelas de personalidade que paralisam o sujeito, e essas questões são vistas, vividas, elaboradas, sentidas no corpo. Não são poucos os relatos de que o processo de aprendizagem das danças africanas e afro-diaspóricas confere a pessoas negras vítimas de racismo uma elevação na autoestima e regeneração da autoimagem, mas sobre isso falaremos num outro texto.

    Enfim, termino esse texto com uma paráfrase de trecho do livro Tornar-se Negra de Neusa Santos Sousa, que não canso de repetir: “Saber-me negra é viver a experiência de ter sido massacrada em minha identidade, confundida em minhas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas também é, sobretudo, a experiência de comprometer-me a resgatar minha história e recriar-me em minhas potencialidades” (Tornar-se negro, de Neuza Santos Souza, disponível para download em: https://escrevivencia.files.wordpress.com/2015/02/tornar-se-negro-neusa-santos-souza.pdf) . Acredito que minha experiência frente ao mar de Toubab Dialaw deu início a esse processo de reconhecimento e recriação da minha identidade...e dividindo isso com as pessoas podemos empreender uma caminhada conjunta em direção a uma existência mais plena de sentido...









MAMA AFRICA
(Artur Neves)


Tens o sangue derramado
Pelos cinco continentes
Os teus filhos naufragados
Noutras terras noutras gentes

Nos teus gritos há raízes
A contar estórias ao mar
Velhas feridas cicatrizes
Com batuques a chamar

Mama África,
Mama África,
Mama África
oH Mama África.

Vem pegar me ao colo
Vem chamar-me filho
Vem dizer quem sou

Tuas lágrimas são rios
Que renascem das entranhas
E o futuro é um desafio
Que eu aposto que tu ganhas

Este canto que eu faço,
O caminho do regresso
É a voz do meu abraço
Aos irmãos que não conheço.

Mama África,
Mama África,
Mama África
oH... Mama África

Vem pegar-me ao colo
Vem chamar-me filho
Vem dizer quem sou

Mama África,
Mama África,
Mama África,
oH... Mama África

Vem pegar-me ao colo
Vem chamar-me filho
Vem dizer quem sou


https://www.youtube.com/watch?v=D2TjxLaniz0

Comentários

  1. linda experiência e belíssimo depoimento Rose!

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  2. É uma volta ao Continente que todos os descendentes vão fazer, seja como você fez, seja com você trazendo a força de lá para nós.

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