DANIEL MARQUES, UMX GRANDE ARTISTA E PESSOA PARTE PARA O ORUN


Estou devendo o texto sobre as relações políticas de Gilberto Freyre, e a sua profissão de elaborar conceitos por encomenda para ditadores, colonizadores e escravocratas. Logo menos pagarei minha dívida… No entanto, um assunto mais urgente e dolorido interrompe minha pausa na escrita e me faz mudar o rumo das palavras…
Estou em dívida com a vida, estive em dívida com Daniel Marques… Estou falando de afetos adiados, daquela sensação de “não dá mais tempo”…
No domingo dia 31/08/2017 recebi uma mensagem de áudio (de uma guerreira preta Yayá Thaina), uma foto dx Daniel:


 Acompanhada do seguinte texto:
“A  maior de todas as dificuldades é aceitar o fato de que um homem está morto. Uma coisa é saber que um amigo está morto e outra coisa é aceitar dentro de nós mesmos, esse silêncio irrespondível; não muitos de nós são capazes de aceitar a realidade da morte. É uma afirmação, óbvia, intrincada. Assim, a imaginação, a quem foi designada a tarefa de recriar e interpretar a vida de alguém que se amou e se presenciou, simplesmente afoga-se como um motor enguiçado, recusa-se a dar contato, e não fará jamais mover-se o veículo.” James Baldwin
Não consegui ouvir o áudio, e não consegui decodificar a foto + o texto… Nada ali fazia sentido…
Daniel Marques para quem não conhece foi umx artista negrx brasileirx, da Zona Leste de São Paulo, co-fundadorx do Sarau "O que dizem os umbigos?!", ativista da cultura na periferia, performer e poeta/tisa, bailarinx e ator/triz… Carregava aquela sina de emanar arte pelo poros, de espalhar vida por onde quer que passasse… Tinha muuuuito axé, sorriso gigantesco, olhos brilhantes e firmeza na voz… Nada nelx combinava com morte, nada nelx remetia a morte… Fiquei com aquele ponto de interrogação sobre a foto, o texto e o áudio que eu não consegui ouvir, mas jamais suspeitei do que se tratava, tamanha a sensação de vida que uma simples foto dx Daniel podia acessar em mim…
No dia seguinte finalmente consegui abrir o áudio, e fiquei em choque… Daniel resolveu partir, nos deixou, cansou de falar com as paredes, de tentar escutar os umbigos amargos e  incomunicáveis que ele tentava tanto acordar…


Foi um performer digno dos lugares mais célebres, foi na sua boca que ouvi pela primeira vez o poema Protesto de Carlos Assumpção, foi também o dia em que lhe conheci, em 2013, na ocasião da aprovação do Vai 2, continuidade do Programa VAI (Programa de Valorização as Iniciativas Culturais), era uma conquista  conseguida com muita luta e x Daniel estava lá, era mais uma batalha vencida daquelx guerreirx… Quando ouvi sua declamação me perguntei, “como essa pessoa não está performando mundo a fora?”, tamanha potência e energia senti na sua forma de dizer as palavras… dando vida e força a elas, fazendo-as existir… Tive que ir falar com elx, estava encantada, ganhei um sorrisão e abraço apertado cheio de amor, ali emparelhamos e fizemos promessas de nos reencontrar… E foi assim, a correria de São Paulo nos permitia encontros em eventos aqui e ali, mas sempre na pressa, adiando os afetos, e com promessas de “tomar um café” lá em casa…
No dia da minha despedida, elx foi e ficou até a Aparelha Luzia fechar, dançamos muito e nos prometemos uma dança para “quando eu voltasse”… Lhe dei um brinco pátua, que eu tinha feito com muito carinho em um momento de muita inspiração, elx sorriu o mais lindo dos sorrisos e foi com essa lembrança que vim…
No dia 1 de agosto passei o dia em choque, em suspensão, não sabia onde colocar aquelas impressões todas, eu não estava lá, eu não acompanhei a história,  minha mente não conseguiu encontrar o ponto de mutação, onde toda a vida que Daniel carregava dentro de si se transformou em desejo de morte… Pensei no quanto adiamos, no quanto deixamos para depois o amor, a amizade, o carinho, a compreensão… Pensei em que dor era essa, enorme, que fez aquele ser humano lindx preferir deixar a vida, a vida que elx tanto emanava… Era algo inimaginável… No entanto, as ideias foram se acentando na minha cabeça/coração, compreendi que elx não deixou a vida, mas que foi  coagidx a deixá-la… Que o racismo, a lgbt-fobia, que a discriminação de classes, que a supremacia branca mais uma vez matavam de forma vil umx dxs nossxs, mais uma vez pisoteavam uma flor até fazê-la desaparecer na dureza do asfalto…
Pensei no quanto a gente não conversou, no quanto a gente não dançou, no quanto o povo preto se distrai com as alegorias do mundo branco e por vezes se abandona, se nega a compartilhar amor, e se afoga em autofagias (usando um termo do queridíssimo Salloma Salomão)… E nessa cegueira não vemos nossos irmãos desesperados em vias de partir…
Daniel era umx artista que encarnava de forma ilustre o cantar-batucar-dançar do qual fala o filósofo congolês Bunseki Fu-Kiau, fazendo de sua arte um todo de energia que nos acendia a alma... Vivia a multidimensionalidade das artes negras da diáspora, a sua simples presença já era um ato artístico, tinha a rara habilidade de viver em estado de arte, semente deixada pelos nossos ancestrais, isso era pulsante nele, vivia a arte que fazia e transmutava dores e revoltas em amor e poesia… Também transcendia os limites duais impostos pela branquite heteronormativa masculina branca… Se recusava a ser pouco, ser vazio, era muito, muito forte, muito intenso, pleno de criatividade, e pela sua grandeza descobriu que o mundo era pequeno demais para ele, e simplesmente se recusou a viver entalado na mesquinhez e mediocridade…
Dani, vá em paz! Descanse! Você foi marvilhosx, deixou um legado de luta e resistência, e simplesmente se recusou a viver em um mundo onde sua energia fortíssima de transformação não cabia, o mundo era pequeno demais para você, ainda está para nascer um mundo onde caberia sua grandeza… A nós que ficamos resta aprender, resta lembrar de ti como exemplo de luta, de performer e sobre tudo de pessoa!!! A morte não te calou manx, sua declamação foi profética: 


Minh’alma está cansada
Eu quero o sol que é de todos
Quero a vida que é de todos
Ou alcanço tudo o que eu quero
Ou gritarei a noite inteira
Como gritam os vulcões
Como gritam os vendavais
Como grita o mar
E nem a morte terá força
Para me calar!
(Trecho do poema Protesto de  Carlos Assumpção)

Manxs e eu xs convoco a pensar sobre quanto amor temos dado, sobre quanta atenção temos dispensado aos que nos rodeiam, quanto tempo temos para nos ver, nos abraçar, nos fazer sorrir e juntos nos libertarmos do amargo que afoga nossa alma cotidianamente…

Escrevo para que mais pessoas saibam que Daniel Marques umx grande artista pretx viveu, arteou muito para a transformação, mudou a vida de muita gente, e que brilhará sempre na memória de quem x conheceu e de quem vier a conhecê-lx!





































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