UM OLHAR DA SENZALA 2: A DOUTRINA DE GILBERTO FREYRE COMO FORJA DA " DEMOCRACIA RACIAL" E DO "LUSO TROPICALISMO"



Dando continuidade as ideias colocadas anteriormente sobre as tendências ideológicas presentes na obra de Gilberto Freyre, neste artigo pretendo trazer um pouco da reflexão sobre as relações e intenções políticas freyrianas, nos contextos Brasil, Portugal e países africanos colonizados por Portugal.
É importante compreender a função dos intelectuais como produtores de discursos que vão legitimar ou deslegitimar ações do Estado, criando teorias para amparar projetos de intervenção social econômica em um determinado território. Outro fator importante é compreender que a cultura, para além da suas funções regionais de conectar os cidadãos de uma determinada sociedade, também é uma ferramenta que pode ser utilizada pelo Estado para estabelecer relações diplomáticas entre territórios, para se forjar uma certa identidade social, produzir bens econômicos através do turismo, entre outras questões. Sendo assim, quando olhamos para as relações estabelecidas entre Gilberto Freyre, Getúlio Vargas e Salazar, podemos compreender que o sociólogo teve uma função extremamente importante na fortificação e validação de ações dos regimes de ambos ditadores, fornecendo-lhes ferramentas de afirmação de suas políticas através de ideologias culturais.
A relação de colaboração entre Gilberto Freyre e Getúlio Vargas não se deu de imediato, primeiramente o sociólogo foi contrário ao projeto político de Vargas, sofrendo graves retaliações por parte do regime como a sua prisão no Recife, em 1935, pelo dispositivo da Lei de Segurança Nacional,  a sua exoneração da docência na Universidade do Distrito Federal entre 1935 e 1937 e o seu banimento do Laboratório de Sociologia do qual era diretor. A razão do choque entre Freyre e Vargas, era que o sociólogo defendia o regionalismo, ou seja, a manutenção da aristocracia rural brasileira que durante todo o período colonial foi subvencionada pelo Estado/Instituições Governamentais. Em linhas gerais a elite nordestina pretendia dar continuidade ao projeto agrícola colonial, agora numa espécie de colonização interna. No entanto, o governo Vargas estava comprometido com a instauração da “modernidade” no país, abrindo assim as fronteiras para que se acelerassem os processos de urbanização e industrialização nas cidades brasileiras.
Nessas condições parte em auto exílio para Portugal, onde também não teve suas ideologias bem recebidas pela classe política de imediato, uma vez que o governo imperial português era simpatizante do ideário darwinista social da superioridade de raças e não comungava com a interpretação que Freyre dava à mestiçagem.
Após o Golpe de Estado inferido por Getúlio Vargas em 1937, Freyre sempre em contato com seus companheiros políticos através de cartas, seguindo os conselhos dos mesmos, e também o exemplo da elite nordestina começa a reformular suas ideias e adaptar-se ao ideário estadonovista, buscando, aproximar-se da máquina governamental, tornando-se de 1938 a 1944 um colaborador do governo Vargas. A reviravolta das oposições se deu justamente porque Vargas estava diante de um país com disparidades e tensões sociais gigantescas de norte a sul, quer no âmbito econômico, social, cultural e racial. Se debatiam no território brasileiro as mais diversas populações, e era necessário gerar uma identidade comum, um sentimento nacionalista, para acalmar os ânimos e cumprir com a agenda da modernidade.
Para além das questões governamentais, o movimento nacionalista euroamericano decorrente da Revolução Industrial afetou a percepção  da elite brasileira, era necessário gerar uma identidade, demandava-se a criação de um eu, sair de baixo das asas da descendência europeia e construir uma imagem para afirmar a existência no território Brasil. No entanto, havia o entrave de que a elite majoritariamente composta por indivíduos brancóides, não fazia senão imitar as expressões culturais europeias. Com o processo de  estabelecimento da outridade provocado pelo nacionalismo europeu, a elite brasileira sentia-se órfã, pertencente a um continente europeu que a rejeitava como esse outro que não faz parte da nossa nação e território, uma espécie de “tribalismo à europeia”, nesse contexto era necessário forjar uma identidade com o que se tinha no território, ver onde cabia “a nossa cara”, se aperceberam então que negros e indígenas eram “a nossa cara”, e que não haveria outra maneira de criar esse “ser brasileiro” sem incluir os mesmos.
 Enquanto isso grande massa da população formada por negros e nativos brasileiros, adaptavam-se e reelaboravam suas expressões culturais, e iam sobrevivendo aos desmante-los e fissuras em suas identidades. Então forjou-se uma identidade nacional com base nas práticas culturais desses povos, distorcidas, arranjadas de modo a satisfazer as necessidades mercadológicas e sociológicas da elite brasileira, porém tomando um cuidado absoluto em não citá-los, em apagá-los, destituí-los da autoria de suas próprias culturas. O movimento modernista foi o primeiro grande movimento de apropriação cultural no Brasil, quer das culturas negras, quer das culturas nativas. A obra de Freyre teve o importante cargo de organizar essa ideologia, retirando todo e qualquer traço de resistência por parte dos explorados e colocando-os como passivos a ação da elite branca brasileira.
Com o avanço da indústria cultural tornava necessário a criação de um mercado cultural, sendo assim, era necessário se apropriar dos bens culturais produzidos pela massa, estilizar e “limpar” para gerar a cultura brasileira, que neste caso, fundiu-se com o turismo, dois aspectos que vão ser muito explorados pelo governo Vargas.
É importante compreender que essas questões não são lineares, e que vão se entrelaçando de acordo com as demandas econômicas, sociais e políticas do país. Algo muito importante de salientar é que o movimento artístico modernista (aquele da Semana de Arte Moderna em 1922), deu o pontapé inicial na ideia de identidade traçada posteriormente pelo governo Vargas, inclusive muitos artistas e intelectuais modernistas vão dar pleno apoio ao desenvolvimento da ideologia de identidade nacional no Estado Novo de Vargas, entre eles temos Cândido Portinari, Cassiano Ricardo, VillaLobos, Mário de Andrade, Menotti del Picchia, Sérgio Buarque de Holanda, Ciro dos Anjos, Nelson Werneck Sodré, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Cecília Meireles, Oscar Niemeyer, Lúcio Costa, Rodrigo Melo Franco de Andrade, e claro, Gilberto Freyre.






Enquanto isso capoeira, sambas, terreiros de candomblé, entre outras manifestações culturais afro-brasileiras resistiam  apesar das repressões policiais, um grande marco para cultura afro-brasileira foi a conversa de Mãe Aninha (Eusébia do Santos Matoso), fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá, com o presidente Getúlio Vargas para liberação do culto em 1930, que comprova que as relações culturais no Brasil estavam em constante estado de tensão.
Neste cenário de tensões culturais, econômicas e políticas, era necessário forjar uma ideologia que unificasse o Brasil, amenizando as tensões internas e viabilizando a política externa do país. Assim, o projeto regionalista de Gilberto Freyre converte-se num projeto nacionalista, louvando-se a mestiçagem e criando o mito da democracia racial brasileira. Há quem diga que Gilberto Freyre era contrário a teoria do embranquecimento da nação, no entanto, faz-se necessário saber que a referida teoria é parte do eixo nascente da ideia de mestiçagem, um “intelectual” brasileiros que anterior a Freyre debruçou-se sobre esse tema foi Oliveira Vianna, um grande desenvolvedor de teses eugenistas que ampararam os estudos sobre a “identidade do povo brasileiro” no início do século XX. No entanto, Freyre adapta a noção de mestiçagem a seus interesses desvinculando esse termo da noção eugenista de embranquecimento, mas sem refutar a ideia de superioridade de raças. É importante compreender que o mito da democracia racial de Gilberto Freyre, está mais ligado a uma idéia de que no Brasil as tensões raciais eram inexistentes e que brancos, negros e indígenas viviam em paz, cada um “ocupando seu espaço” na estrutura social, ou seja, brancos compondo a elite governante do país, e negros e indígenas como mão de obra a serviço dos projetos dessa mesma elite. Sendo assim, a democracia freyriana nada tem a ver com igualdade de direitos, mas com a co-existência pacífica entre exploradores e explorados, ignorando assim os conflitos existentes no seio da sociedade brasileira, que para o contingente negro pouco mudou no pós-escravidão. (O surgimento da Frente Negra Brasileira em 1931, que visava reivindicar direitos iguais para a população negra, se espalhou de São Paulo para vários estados do sudeste, nordeste e sul brasileiro, constituiu como partido político oficial registrada  pelo TSE, e foi dissolvida em 1937 pelo decreto de Getúlio Vargas que proibia a existência de partidos políticos, denota que as relações de disparidades de direitos era imensa nesse período).
Ou seja para Gilberto Freyre o negro e o indígena são inferiores, mas são inofensivos, e com sua visceralidade produzem bens que podem ser manipulados pela elite (ou pelo senhor de escravos) da forma que bem lhe apeteça.


Porto de Bissau - Carregamento de amendoim 1947: http://www.buala.org/pt/a-ler/o-luso-tropicalismo-e-o-colonialismo-portugues-tardio


No contexto português a utilidade dos pensamentos de Freyre vai se fazer no pós Segunda Guerra Mundial, quando Portugal se viu pressionado pelas organizações internacionais a libertar suas colônias, e teve a necessidade de reelaborar legislações, ideologias e doutrinas. Sendo assim, uma das medidas tomadas foi mudar a nomenclatura utilizada para se referir as colônias dentro da Constituição Nacional, que passaram a ser chamadas de “províncias ultramarinas”, consideradas como extensões de Portugal. Em 1951, Gilberto Freyre foi convidado pelo Ministério do Ultramar para percorrer as “terras lusitanas” “com olhos de homem de estudo” para produzir uma reflexão sobre "a realidade" das mesmas. Foi neste período que Freyre utilizou pela primeira vez o termo “luso-tropicalismo” para referir-se a "boa adaptação" do povo português aos trópicos. Para fins de escamotear as reais relações raciais que vigiam nas colônias o regime salazarista substituiu a ideologia darwinista social pela “louvação” à mestiçagem de Gilberto Freyre, e assim começa uma parceria entre a produção intelectual deste e a necessidade de "reconfiguração" ideológica do Estado Português, para fazer frente à pressão internacional anticolonial.
                A obra de Freyre foi uma fonte tão fecunda para este momento de crise do governo de António de Oliveira Salazar que em meados dos anos 1950, diplomatas portugueses receberão do Ministério dos Negócios Estrangeiros, a orientação de acompanhar diligentemente a produção intelectual de Gilberto Freyre, fossem livros, artigos, revistas, etc. E no início de 1958, o Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigação do Ultramar publica o livro de Freyre “Integração portuguesa nos trópicos”, amplamente divulgado e distribuído pelas embaixadas no ano seguinte. Em 1961 foi publicado “O luso e o trópico” também amplamente difundido pelos órgãos diplomáticos portugueses, e Gilberto Freyre tornou-se então um ideólogo doutrinador que orientava os discursos do regime salazarista em prol da manutenção das colônias.
                Neste contexto, era necessário Portugal convencer a ONU de que realmente constituíra nações nos espaços colonizados e negar qualquer tipo de cisão social, racial, religiosa, nestes ambientes, sendo assim, os estudos de Freyre forneceram uma ampla base de sustentação para estes discursos. A utilização do pensamento freyriano foi tão ampla que em 1955-1956 Adriano Moreira inclui o estudo do luso tropicalismo dentro da sua disciplina Política Ultramarina, do 2º ano do curso de Altos Estudos Ultramarinos. Desde então, foram produzidas inúmeras teses de mestrado e doutorados com base na doutrina de Gilberto Freyre. Adesão da academia portuguesa ao luso tropicalismo, em alguns casos, escondia a consciência crítica sobre o que se passava de fato na colônia portuguesa. Através da diferenciação jurídica  que mantinha direitos diferentes para o “indígena” e os "portugueses", a discriminação racial se acentuava, eram permitidos castigos físicos dos “não civilizados” por seus patrões, havia diferenciação salarial, “recrutamento forçado”, segregação racial, entre tantas outras condições degradantes de humanidade que de forma nenhuma correspondiam à "benevolência cristã" portuguesa, ou a união de diferentes povos, ou a igualdade de direitos entre os diferentes e a ótima convivência entre portugueses e  colonizados, salientadas no ideário "luso tropicalista" de  Freyre.
                Terminamos, enfatizando que os malabarismos ideológicos de Gilberto Freyre forjaram realidades, inventaram identidades e apaziguaram relações tensas no plano das palavras, e que tais ideias foram extremamente prejudiciais para o desenvolvimento e auto consciência das sociedades envolvidas nas suas reflexões falaciosas, que até hoje escamoteiam relações históricas perversas e espoliadoras de Portugal para com os países colonizados, tensões racias, sociais e identidades múltiplas presentes no seio da sociedade brasileira, e obliteram a visão de tantas pessoas dentro e fora de ambientes acadêmicos.


Para saber mais:

O projeto regionalista de Gilberto Freyre e o Estado Novo: da crise do pacto oligárquico à modernização contemporizadora das disparidades regionais do Brasil 

UM NOVO OLHAR SOBRE O DIP: UMA REVOLUÇÃO NA ARTE DA PROPAGANDA E DO MARKETIN GCULTURAL 


As teorias racialistas na construção da identidade nacional


Frente Negra Brasileira tem ideais sufocados

O Lusotropicalismo e o colonialismo Português tardio

ReverberaçõesLusotropicais, Gilberto Freyre em África 1 Cabo Verde 


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