ENGAJAMENTO, ÉTICA E A OBJETIFICAÇÃO DA AFRICANIDADE



Para Luciano Lubanzadyo e Carla Lopes





“Enquanto vocês continuarem me diferenciando pela minha cor, eu vou continuar afirmando a minha diferença.”

(Patrick Acogny)

O lugar onde estou (Toubab Dialaw) é região praieira, estou a 5 minutos do mar em  caminhada leve. Vou caminhar na praia quase todos os dias pela manhã, e todos os dias as bordas do mar estão infestadas de lixos que foram jogados no mar, peixinhos mortos e etc... A convivência com o mar e as conversas com as pessoas me fizeram chegar à seguinte reflexão: “o mar não fica com nada que não seja dele, nem com o que já não serve mais. O mar se limpa todas as manhãs de tudo o que está morto e de tudo o que contamina.”

Tivemos uma aula de Criação em Dança Negra Contemporânea com Patrick Acogny que me fez refletir muito sobre várias questões, em realidade foram provocações mesmo. Ele nos deu 3 textos como ponto de partida para criação: o surgimento dos concursos de Mis e Mister e sua influência na determinação do padrão de beleza; outro que falava da “bunda política” ou seja, o novo padrão de beleza corporal que se impõe através das cantoras pop's estadosunidenses que coloca em cheque o corpo esguio e longilíneo evocado pelo padrão de beleza eurocêntrico; e por fim, o caso de Rachel Dolezal a ativista estadosunidense branca, que protagoniza lutas pelos direitos da população negra nos Estados Unidos, que se passou por negra assumindo formas corporais negróides (encrespamento de cabelos, dreads e bronzeamento artificial), e mentiu sobre suas raízes dizendo ter familiares negros.

Tendo como ponto de partida esses textos, as provocações de Patrick, e a observação de muitas práticas que tenho visto por aqui (por parte dos turistas), fiquei com muitas questões que são doloridas e envenenam minha alma nesse momento, e assim como faz o mar vou lançá-las para fora, não como lixo que não serve mais, mas como reflexões fortes que servem para nos ajudar a reparar atitudes controversas que apenas reforçam os processos de objetificação do corpo negro vivenciados ao longo da história.

Ao longo da história o corpo negro e a africanidade tem sido objetificados, primeiramente no cruel processo literal de escravização de pessoas, após por um processo de escravização camuflado no qual a existência da pessoa negra é determinada pela pela pessoa branca, ou seja, é a pessoa branca que determina os padrões de beleza, de inteligência, de conhecimento, de refinamento, de direitos, espiritualidade, etc, e a pessoa negra está sempre subordinada a esses padrões que simplesmente o excluem como o outro primitivo, exótico, irracional, forte, libidinoso, intuitivo, animalesco, etc. Soma-se a essa questão também a escravização via sistema capitalista que produz o processo de subalternização de quem só possui a força de trabalho como meio de sobrevivência. Enfim, todos esses processos são muito complexos e merecem muito aprofundamento que não é possível nesse texto, mas fazem parte de uma intrincada trama que prende o sujeito negro ao estado de objeto.

E já faz algum tempo que temos mais uma forma de “aniquilamento” do povo negro, que  é o processo de destituição da identidade cultural africana e afrodescendente, muitas pessoas dizem apropriação cultural, mas eu prefiro dizer destituição da identidade cultural. Explico-me, a identidade cultural africana e afrodescendente tem sido há séculos o principal meio de resistência de povos oprimidos, no entanto, com o passar dos anos essas manifestações estão sendo assimiladas pelo sistema capitalista o que as faz perder a força, ao mesmo tempo em que tem dado dinheiro para muita gente branca que diz atuar em prol da causa negra.

Para ser mais concreta o que vemos hoje em dia é todo mundo reivindicando sua africanidade, brancos e negros, diaspóricos ou não, se sentem no direito de falar de africanidade, de falar de negritude, de ser africano, de ser “um pouco negro” também... E como disse o Patrick em uma das discussões que tivemos aqui: O que é ser africano? Africano é apenas a pessoa negra? Os brancos que nascem na África do Sul não são africanos? Por que tem gente da diáspora que se sentem mais africano que os próprios africanos?

Em panoramas gerais, pelo que vejo, e por tudo o que estudei, a cultura eurocêntrica se afastou tanto da natureza que perdeu sua energia vital... Está esgotada no individualismo e na cultura de marcado aplicada aos mais variados âmbitos da vida. Isso gera muita angústia, muito desespero, muita insegurança... Então, se busca refúgio nas culturas que resistiram e que de alguma forma ainda possuem uma característica de religação entre os seres presentes no universo. No entanto, essa busca está sendo feita com muito desrespeito à natureza e ao outro, e muito individualismo, características base do sistema capitalista que se fundamenta a visão eurocêntrica de mundo, pois essas pessoas “não escutaram o aviso para pisar nesse chão devagarinho”. Então chegam com suas botas sujas sem pedir licença, entram e saem como se fosse o quintal, bebem da fonte e acham que podem falar pelos africanos e afro-descendentes... É um verdadeiro processo de predação do conhecimento, vem aqui aprende as danças, músicas, artesanatos, culinária e acham que podem falar pelos africanos, porque estiveram aqui... Estou falando de África mas algo muito parecido se passa no nordeste do Brasil, os mestres da cultura popular são sugados e depois não recebem absolutamente nada dos grupos que vão até eles sugar o conhecimento... Aqui vejo e soube de muitos europeus que fazem isso, e no Brasil não é diferente, nesse momento temos muitos artistas africanos em solo brasileiro que não conseguem espaço para trabalhar, passam pelos grupos que sugam seus conhecimentos e depois os colocam fora de projetos ganhos com nomes e currículos de africanos, sem falar de brasileiros brancos que vieram à África, e reivindicam seu direito de falar pelos negros africanos porque estiveram aqui...

Africanidade e afro-brasilidade atualmente são quase produtos que se compram em uma loja, muitos grupos de pessoas brancas que trabalham com essas temáticas reinvindicam: “eu estive lá em tal país, posso falar disso!” Ora, então africanidade e negritude é comprável por algumas viagens??? Não, não é... Nada substitui a experiência do ser um corpo negro no mundo! Principalmente num mundo com tantas fronteiras para o povo negro como o nosso.

Então, o que quero deixar explícito aqui é que é preciso ter muito cuidado ao se trabalhar com cultura negra, principalmente para quem não é ameaçado pela polícia todos os dias, para quem não sofreu os mais variados tipos de humilhação no ambiente escolar quando criança, para quem nunca foi seguido por um segurança de mercado ou destratado em uma loja, para quem nunca teve o seu direito de ir e vir limitado pela sua cor, entre muitos outros fatos que ainda cercam e limitam a fluência do povo negro pelo mundo... A existência desse povo precisa ser respeitada, afinal é muito fácil “ser mais negro que muito negro”, é muito fácil ser negro quando dá vontade, o problema é ser negro toda hora, o problema é ser negro na frente da polícia brasileira que mata cerca de 83 jovens negros entre 15 e 29 anos por dia... Entre outras situações para além dessas que eu já citei aqui...

E com isso não quero dizer que pessoas brancas não podem se engajar na luta negra, podem e devem pois o genocídio das populações negra e indígena são um problema de toda a humanidade. No entanto, é preciso engajar-se com ética, respeitando o outro, sabendo quem sou eu, de que ponto estou falando, e qual é o lugar da minha voz nessa luta... Engajar-se é estar junto com o outro lutando por uma causa, não tirar do outro sua identidade para poder falar por ele e protagonizar a causa que diz respeito a ele... Aos professores e artistas não negros que resolveram trabalhar com essa temática, sejam muito bem vindos! Mas pisem nesse chão devagarinho, buscando dentro de vocês aquele respeito que nossos antepassados europeus não tiveram ao lidar com as pessoas negras e indígenas, vamos fazer diferente, nós já temos consciência e podemos!

Enfim, são essas as questões que meu mar interior resolveu mandar para fora e colocar a olhos nus... Pois realmente é importante se refletir sobre esses assuntos, são coisas espinhosas, difíceis, mas foi o legado que nossa ancestralidade européia nos deixou e temos que lidar com ele, reparar os danos e buscar ter condutas que os mesmos por ignorância, ganância e petulância não foram capazes de assumir... Os colonizadores e escravizadores nos legaram essa forma predatória de lidar com o outro, é nossa obrigação mudar os rumos e fazer uma nova história... Afinal todos reivindicam sua ancestralidade negra, mas ninguém se dá conta de que é a nossa ancestralidade eurocêntrica (sim, nós temos uma!) que ainda se faz presente quando olhamos para o mundo, então é essa forma de ver o outro como objeto que temos que transformar, para podermos ter dias melhores.

Se você que colaborar com esse compartilhamento de experiências acesse: http://www.kickante.com.br/campanhas/intercambio-cultural-brasil-senegal-danca-negra-contemporanea

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